Um livro infantil não há de ser tão perigoso: a ideologia em Quase de verdade, de Clarice Lispector
Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 34, n. 00, e023018, 2023. e-ISSN: 2236-0441
DOI: https://doi.org/10.32930/nuances.v34i00.9262 10
2023), quase sempre reafirmados em uma posição de prestígio, de um lugar de autoridade e de
responsabilidade pelo que se diz. Assim, ler ou trabalhar com a obra da autora pode ser
sinônimo de profundo conhecimento literário. É por essa razão que textos como o conto Amor
e o livro A hora da estrela já figuraram como leituras obrigatórias em vestibulares como os da
Universidade Estadual de Campinas e Universidade de São Paulo, respectivamente, apenas para
citar dois exemplos. Mas e a sua produção voltada ao público infantil?
Em Quase de verdade, livro narrado pelo sujeito-personagem cachorro Ulisses, a autora
aborda a vida em uma fazenda, em que cada espécie se dedicava a um fazer específico. Em
dado momento, as galinhas, que eram responsáveis por produzir os ovos, passam a ser
exploradas por uma figueira que não dava frutos. Esta, identificando que as galinhas punham
os ovos apenas quando havia luz, faz um pacto com uma bruxa que passa a iluminar a sua copa:
“Quero vender esses ovos e ganhar muito dinheiro” (LISPECTOR, 2010, p. 56). Assim, com a
árvore permanentemente iluminada, as galinhas passam a produzir ovos o dia todo, inclusive à
noite, gerando grande lucro para a figueira, que passa a vender toda a produção.
As aves demoram a compreender o que se passa, apenas se queixando por estarem
extenuadas. O galo Ovídio também é explorado: “Aconteceu que as galinhas ficaram assustadas
porque nunca mais dormiam, pois botavam ovo sem parar, o tempo todo. Quanto a Ovídio, ele
se estrepou: como pensava que era de dia, ficava rouco de tanto cocoricar” (LISPECTOR, 2010,
p. 57). A figueira, a essa altura, contabiliza o seu lucro: “Enquanto isso, a figueira juntava ovos
que não era vida e tudo para vender e virar milionária. E nada pagava às galinhas, nem com
milho, nem com minhoca, nem com água. Era só aquela escravidão” (p. 57).
A situação de exploração do trabalho só cessa quando as galinhas e os galos,
organizados contra a opressão da figueira, reúnem-se: “(...) eles iam contra a figueira ditadora,
iam exigir os seus direitos, pôr ovos para eles mesmos, reclamar comida, água, dormida e
descanso” (LISPECTOR, 2010, p. 58). Para tanto, colocam em prática um plano: atiram, então,
os ovos produzidos contra a figueira, quebrando-os todos: “(...) caíam no chão, quebrando-se
eles todos, e era casca para um lado, gemarada para outro, claras por aí mesmo, tudo
apodrecendo na terra. É uma pena sacrificar tanto ovo? É, mas às vezes a gente precisa fazer
um sacrifício” (p. 59-60). Nem mesmo a bruxa, cúmplice da figueira, a apoia neste momento.
Após o movimento organizado, as galinhas, então, passam a produzir apenas quando há
a luz, ou seja, apenas durante o dia, voltando à normalidade. Com essa breve descrição do
enredo, problematizaremos, segundo a análise do discurso pecheutiana, como os conceitos de
autoria e de ideologia nos auxiliam a compreender como a literatura pode se colocar, na escola,